sábado, 22 de janeiro de 2011

Acesa só sobrou a lareira daquele lugar. O Saulo comia descompassadamente, a Elisa sentia um enjoo... 

A Elisa era apaixonada por alpinismo. O Saulo? Tava vidrado na promoção do fim do ano na empresa em que trabalhava há sete. A Elisa queria ter filhos dois anos depois do Saulo. A Elisa e o Saulo. O Saulo não abria mão do futebol de quarta a noite com o Leleco e com o Juninho. A Elisa não abria mão de reler o livro preferido pelo menos uma vez por ano. O Saulo esquecia a sogra nas datas comemorativas. A sogra da Elisa morava no sul da América Latina.

O Saulo e a Elisa não terminaram porque a Elisa tinha um desafio de alpinismo de três meses em três estados diferentes do Brasil. Ou porque o Saulo tinha aquela necessidade fortíssima de, às vezes, viajar sozinho. Não terminaram porque a Elisa recebia constantes ligações dos pacientes da terapia ou porque o Saulo foi grosseiro naquele dia em que chegou meio bêbado do futebol. A Elisa empacotou, do Saulo, o perfume, o troféu de empregado do ano, as botas que ela odiava, mas que ele insistia em usar. O Saulo empacotou, da Elisa, o livro de Psicanálise, os CDs do Buddy Guy, os sneakers que ela guardava como recordação do campeonato passado e aquelas malditas pastilhas de freio que ela prometia levar junto com o carro na oficina toda semana.


Não era aí que o Saulo e a Elisa eram tão diferentes. O Saulo e a Elisa eram tão diferentes porque a Elisa respeitava o Saulo de um jeito; o Saulo respeitava a Elisa de outro. Porque a Elisa tinha pouca paciência e porque o Saulo não media esforços pra fechar o bico na hora de dizer pro Leleco que a Marcelinha, aquela ex-wife do segundo casamento, sempre foi linda. O Saulo e a Elisa terminaram porque a Elisa insistia em dizer como era bom conversar com o Matheus, aquele namorado que ela teve na faculdade, a respeito de escalada porque ele sim, esteve lá quando ela passou por aquele momento difícil de voltar aos esportes radicais. O Saulo nunca disse a Elisa que a Marcelinha o incentivava na empresa melhor que ela. Simplesmente não disse porque sabia que isso ia machucá-la. Assim como a Elisa nunca disse ao Saulo que quem fez ela não desistir da Psicanálise foi o Lauro, o primeiro marido. E que ainda achava o Arnaldo - o primo com quem teve um affair - um cara tão gostoso, que quando o via no Natal passava mal. E adivinha por que ela não disse? Entre esses e outros motivos, o Saulo e a Elisa se machucaram tanto e não souberam se cuidar depois. Acontece que os valores do Saulo são diferentes dos valores da Elisa. E os princípios da Elisa, são diferentes dos princípios do Saulo. Acontece que a meneira como a Elisa lida com as impaciências do Saulo é diferente da maneira como o Saulo enxerga as impaciências da Elisa. Acontece que o Saulo e a Elisa terminaram não porque a Elisa é mulher do Saulo, alpinista, psicanalista e possivelmente uma mãe liberal ou porque o Saulo é empresário, viajante, amador no futebol e possivelmente um pai controlador. Mas porque o Saulo não notou que precisava reerguer ou consolar a Elisa em algum momento ou porque a Elisa foi impaciente o suficiente pra se abster dessa vez de dizer como o Saulo poderia agir pra contornar a situação. Porque a Elisa não conseguiu pedir sinceras desculpas ou porque o Saulo sabia que não ia conseguir passar por mais essa sozinho.






- Mas a Elisa nunca apontou o dedo na minha cara e disse "Não, hoje você não vai ao futebol"
- O Saulo nunca me segurou pelo braço e disse "Você não acha que está na hora de largar esse telefone?"
- A Elisa nunca disse "Pra que tanto você quer viajar sozinho, Saulo?"
- O Saulo nunca disse "Você não cansa desse livro velho?"




Aí o Saulo abriu a caixa, tirou as botas e nunca mais usou. Tirou o perfume e colocou perto da pia. A Elisa abriu a caixa, tirou os sneakers e colocou numa caixa no fundo do armário. Pegou as pastilhas de freio e saiu pra oficina. E a caixa dos dois ficou lá aberta como se tivesse mais alguma coisa custando a sair. 


A lareira ficou acesa, a xícara de café da Elisa esfriou, durante a arrumação. A cerveja do Saulo pingou perto do tapete. E enquanto o Saulo continuava comendo descontroladamente, a Elisa tomava um remedinho pro enjoo. E só tinham uma certeza... a Elisa e o Saulo e engoliam-na a cada segundo do dia. Porque A Elisa estava esperando o Saulo se mover e o Saulo esperando a Elisa dizer como seria. Porque o Saulo estava esperando as desculpas sinceras da Elisa e porque a Elisa estava esperando o Saulo lembrar de ser mais carinhoso. O Saulo estava esperando a Elisa reclamar do pingo de cerveja no chão e o Saulo esperando a Elisa dizer que o troféu de empresário do ano ficava tão bem na prateleira. O Saulo estava esperando aquele momento de dizer a Elisa: "Amor, posso guardar seu celular?". A Elisa querendo tirar de dentro da caixa aquela massagem de depois do sexo. O Saulo querendo tirar o sexo de dentro da caixa. A Elisa querendo tirar da caixa "Dear, vou viajar e sei que vai ser difícil de conviver com essa distância, mas pode ficar tranquila. Te amo, vou voltar com muita saudade". O Saulo querendo tirar da caixa: "Você está dando um duro danado por essa promoção, estou muito orgulhosa de você só por isso". A Elisa querendo tirar da caixa: "Sinceramente quero fazer as coisas ficarem melhores". O Saulo querendo tirar da caixa: "Realmente quero ser melhor". 


A caixa aberta no meio da sala, o dia torna a ir amanhecendo e da caixa saem: "Vai ser sempre esse drama?", "Fica na tua", "Nossa foi ótimo com a Marcelinha", "O Leandro era um louco na cama", "Caramba, esqueci você na outra bolsa", "Caramba, foi tudo porque saí sem bolsa!", "Se te chateou.. desculpa", "Shit Happens". "Desisto".






- Da minha caixa é: "_ E   A _ _". Enquanto estiver escancarada no meio da sala.

Um comentário:

Liliane disse...

Não canso de dizer o quanto eu adoro ler esse blog.