sexta-feira, 25 de junho de 2010

Décima quarta voz


Já não sabia mais qual mulher era. Quando o céu se fez cinza e as nuvens todas se juntaram, eu estava lá, inteira, olhando pra cima e esperando acontecer. Tirei as roupas, pus na mala e me mudei pra você. Num segundo senti como se estivesse no meio da bagunça, como se não tivesse arrumado a casa direito ou como se tivesse deixado a mala entreaberta e as coisas estivessem caindo pelo meio do caminho. Foi, então que levantei e olhei pra trás com a sensação de ter esquecido algo, mas aí você disse: tá tudo aqui. Entre a sensação e a confiança, segui. E nessa pressa nublada já não sabia se era eu ou se Marília, com perfume de terra molhada das primeiras gotas de chuva.




...e quando as outras gotas caíram. O céu ficando azul.. Tudo em volta escureceu. Só eu notei? As únicas luzes que via eram aquelas que definiam rotas sinuosas e bem vermelhas, tanto quanto os dedos entre os fios dos teus cabelos. Parecia fumaça, mas não era. As que se mexiam eram faróis dos carros que passavam por trás do vidro. Refletia ou frio ou chuva, embaçado. As que não se mexiam indicavam fechado. Eis que meu pescoço quis suar na tua mão pela primeira vez, meu abraço quis marcar as tuas costas, minhas mãos... Não sabia se era eu ou se Anaís, embebida em efervescência entre as luzes que via piscar e que esquentavam parte a parte do meu corpo. Seria mesmo as luzes que o aqueciam?




E aí que me perdi nas mulheres que tu me apresentaste. Achei, por hora, que a incendiária fosse a mais vulnerável e tive certeza e que a recatada fosse aquela que não tem medo de cair de boca e sentir todos os gostos em uma noite só, de uma noite-chuva. 




Fosse eu, fosse Marília, um dia Anaís. Tanto faz. Seríamos a mesma mulher contanto que você fosse você, todas as vezes.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Maninha, precisava ser agora?

Eis, quando eu soube, assim de imediato, não acreditei. Esse vício de eternidade que a gente tem. E logo você, bicho? Tão agitadinha, tão atrevidinha e cheia de vida. Fui ao banheiro lavar o rosto, molhar os pulsos e olhar bem a minha cara cansada de 33 anos. Quando saí e espiei em volta tudo continuava lá. Feito nada tivesse acontecido Lembrei duma história da mitologia grega. Contam que quando morreu Pan, o deus da música, alguns pescadores ouviram uma voz misteriosa gritar numa praia deserta: ‘O grande deus Pan morreu!” E nunca mais se ouviu falar dele. Hélice – como te chamava a Rita, acho que por causa daquela sua mania antiga de girar os braços enquanto cantava, em tempos de Arrastão – eu não sei o que estou sentindo. Depois do trabalho, saí a procurar pelas ruas do centro da cidade um sinal qualquer que confirmasse ou desmentisse tua partida. Não encontrei nada. As lojas não tocavam seus discos. Ninguém caminhava devagar. Não havia nenhuma melancolia específica no céu, além do cinza habitual. Só eu assobiava baixinho “Acender as velas já é profissão, quando não tem samba, tem desilusão”. (Vezenquando, só de sacanagem, você dizia ‘Quando não sou eu, é Nara Leão’, e dava aquela risada gostosa.) Então peguei um táxi e vim embora. Pedi para o motorista ligar o rádio, mas tocava Núbia Lafaiete. Você acharia engraçado. Pedi para ele parar antes de casa, comprei duas garrafas de vinho. Estou no meio da segunda. Pimentinha, que difícil que tá. Você tem que amar quem você ama agora, JÁ, você tem que começar a fazer tudo o que você quer porque a bruxa tá do lado esperando. Elis, eu também vou morrer nem sei quando. Antes eu queria tanto ser feliz. Embora nem saiba como é isso. Acendo uma vela branca procê ir embora numa boa. Abro as janelas e ponho bem alto você cantando ‘Primeiro Jornal’, porque é assim que quero te guardar, juntando tua voz matinal aos restos dos sons noturnos que ainda boiam na casa. Não tenho medo da morte. Tenho medo da vida. Baixinha, foi tão de repente... Mas ainda ontem, todo domingo de manhã eu ia ao cinema Castelo assistir você cantando no programa do Maurício Sobrinho, da Rádio Gaúcha. Você vinha com aqueles vestidos repolhudos cantar ‘Banho de lua’ e aquelas versões tipo Fred Jorge (Vixe, como tô ficando veio, guria!). No fim todo mundo aplaudia de pé, dançava e cantava junto. Depois, feito a Janis Joplin fez com Port Arthur, você saiu de Porto Alegre. Foi ser estrela na vida. Falavam mal, então como falavam: porque isso, porque aquilo, porque você chiava como carioca, que era metida que nem parecia ter saído dali do Partenon, que parecia que tinha Deus na barriga (descobri depois que você tinha mesmo, não na barriga, mas na voz). Nunca mais te vi ao vivo, só no finzinho do ano passado, no Anhembi. De repente você disse que queria falar com Deus. Eu me arrepiei. Parecido com quando você cantava ‘Atrás da porta’. Ou quando, naquele inverno comprido eu atravessava noites bebendo conhaque ouvindo ‘As aparências enganam’. Uma vez a Paula Dip bateu na porta enquanto você cantava e, mal abri, ela caiu no choro, porque tinha vindo contar-me coisas sobre esses enganos, essas aparências.
Maninha, precisava ser agora? Em pleno verão, o sol quase em Aquário. Sei que teu coração não aguentava mais tanta barra. Sacanagem... E juro que agora eu ouvi você rindo assim: quá-quá-rá-quá-quá. Tô sentindo um oco, Hélice. Tão ruim. O dia não conseguiu chover: eu queria agora chorar todo o choro que o dia não chorou por ti. Não consigo. Eu tenho a impressão de que poderia reconstituir, dias após dia, desde uma daquelas manhãs de domingo no Cine Castelo (que coisa mágica, eu tinha 12 anos, você 15) até estas duas da madrugada de hoje? Consigo não, Che. A gente, que é gaúcho, se entende. O tempo existe, Pimentinha, e passa, leva no arrastão as coisas e as pessoas que não morrem: ficam encantadas. Y solo resta el silencio, un ondulado silencio...
Nós te amávamos tanto, tanto. Guria. Até.

Caio Fernando Abreu

domingo, 6 de junho de 2010

A má índole está naqueles que tem uma dificuldade meio grande de lidar com os limites. Já percebi. Não é como a má educação, por exemplo. A má educação é algo que se pode notar a quilômetros. A má índole é uma deformidade de caráter... e caráter... a gente não vê. É algo meio peculiar, não sei explicar. A única coisa que sei é que quando se trata de universo, as coisas acontecem como jogar constantemente uma bola na parede, do jeito que você joga, ela volta.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
 

Eu possa me dizer do amor que tive:
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

VM
Quem entende meus traços, que não os veja.