domingo, 23 de setembro de 2012

de Álvaro de Campos

Cruzou por mim, veio ter comigo numa rua da Baixa, aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara, que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele e reciprocamente num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha (exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro: Não sou parvo nem romancista russo aplicado. E romantismo sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda, sobretudo quando não merece simpatia. Sim, eu sou também vadio e pedinte e sou-o também por minha culpa. Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte, é estar ao lado da escala social, é não ser adaptável as normas da vida, às normas reais ou sentimentais da vida, não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta, não ser pobre a valer, empregado, explorado, não ser doente de uma doença incurável, não ser sedento da justiça ou capitão de cavalaria. Não ser enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas, que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas e se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão, tudo menos importar-me com a humanidade, tudo menos ceder ao humanitarismo. De que serve uma sensação, se há uma razão exterior a ela? 
Sim, ser vadio e pedinte como eu sou, não é ser vadio e pedinte, o que é corrente: É ser isolado na alma e isso é que é ser vadio. É ter que pedir aos dias que passem e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki. Tudo mais é ter fome ou não ter o que vestir. E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente, que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato e estou-me rebolando numa grande caridade por mim. (...)

(heterônimo de Fernando Pessoa)